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CONTOS, TEXTOS ASSINADOS & EVENTOS...

 

CONTOS
 
1- "A longa viagem de Aureliano Filgueiras"
 

A primeira ação que seus familiares tomaram, assim que Aureliano Filgueiras chegou de volta de sua longa viagem, e a contar, desbragadamente, aquelas estórias todas que havia presenciado, foi o conselho a que procurasse um médico. A segunda, foi interná-lo de vez numa clínica para tratamento psiquiátrico. Pois quando naquele dia Aureliano entrou em sua casa - rude, barbado e com o olhar ensandecido -, relatando o que lhe acontecera quando do seu sumiço  por quase sete anos e meio, todos pareceram escutar atentamente o que dizia, embora já desconfiados de que o homem enlouquecera de vez. E quando Aureliano não satisfeito, por ter apenas os ouvidos domésticos como platéia, passou a propalar aos quatro cantos do bairro onde morava, indo de casa em casa, as suas estórias malucas, não só todos se preocuparam com a possível insanidade do pobre coitado, como também trataram de proteger suas crianças de um acesso de loucura mais descabido. 

 

Agora, deitado e sonolento naquela cama da enfermaria de uma clínica, após ter tomado um forte antisiolítico para se acalmar, o jornalista Aureliano Filgueiras recordava, como em um sonho, todas aquelas coisas que haviam acontecido em sua vida, quando, a convite do famoso e cultuado escritor Gabriel García Márquez, foram, os dois, até o distante município de Uari, então apenas uma cidadezinha com poucas ruas enlameadas e casas mal ajambradas, localizado às margens de um lago de águas negras e misteriosas. Aureliano lembrava de tudo isso, com Gabo a seu lado, de quando esteve lá. Os dois tentando descobrir a verdade em meio à mentira. E descobrir a fantasia em meio à realidade.

 

Aureliano Filgueiras, portanto, chegou em sua casa, naquele dia, contando tudo isso e muito mais. Quanto ao Gabriel García Márquez. Esse, como vocês já devem saber, escreveu vários romances fantásticos; ganhou o prêmio Nobel de literatura e sempre  soube que, quando podia, poderia passar os dias da festa do Divino no distante e ainda incompreensível município de Uari, localizado em um dos lagos escondidos do alto Solimões, no estado do Amazonas. Naquele tempo, antes de ficar doente e recluso, Gabo dizia que eram as suas férias mais esperadas. Antes de finalmente encantar-se e desparecer de vez...

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2- "Após uma noite insone"

 

Ficou olhando os navios ancorados à sua frente. Gostava daquela visão dos inúmeros barcos e navios estacionados no porto. Da brisa da manhã. Do movimento lento das águas. Das gaivotas começando a cruzar o infinito. E gostava principalmente daquele odor característico que todas as docas, em qualquer lugar do mundo, exalam. “Sozinho”, pensou. Saiu do porto, caminhando lentamente. Precisava tomar um café bem forte. Foi até uma lanchonete.

- Um café bem forte com um sanduíche de queijo quente - pediu.

Após aquele desjejum, puxou um cigarro e o acendeu lentamente. Focou a pequenina chama, imerso em pensamentos de paz. Deu uma tragada e expeliu a fumaça. Visualizou-a subindo e desaparecendo no ar. Terminado o cigarro, jogou a bagana ao chão e pisou-a com decisão. Retomou então a sua caminhada. A cidade já acordara àquela hora. Carros e ônibus trafegavam com seus motores rasgando o silêncio. Camelôs ali perto começavam a armar suas tendas. Ele desapareceu lentamente por entre aquela gente. 

 Ao chegar no seu apartamento, descansou um pouco. Dormiu, na verdade. Quando acordou, tomou um banho, vestiu uma roupa confortável e foi direto para o computador escrever mais um de seus livros. O assunto? Contos de um escritor que, após uma madrugada insone, andando por bares e ruas, volta para a sua casa e resolve escrever um livro sobre esse fato e outros assuntos dos quais vinha tomando notas. Tudo para sistematizar um livro de conto, no final. Título do livro: “Contos crônicos”...

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3- "Mas isso tudo é fantástico!"
 

Tudo parecia estar perdido. A empresa estava em uma situação de extremas dificuldades financeiras. O diretor-presidente e os seus assessores já não sabiam mais o que fazer e o que dizer.

- Talvez, no próximo mês a gente não consiga mais pagar o salário dos funcionários - observou o responsável pela contabilidade.

Na sua sala, esperando a reunião com todos os funcionários, o dono da empresa também não sabia o que lhes poderia dizer. Então, como sempre fazia nessas ocasiões e durante toda a sua vida, resolveu orar.

- Deus, faça com que eu encontre as palavras certas - pediu.

Já na frente de seus subordinados, um vazio enorme tomou conta de sua emoção e parecia que ele não receberia nenhuma inspiração divina. Olhou para os lados; olhou para cima; olhou na direção dos funcionários, e disse a única frase que lhe veio à cabeça.

- Mas isso tudo é fantástico!

Logo que disse isso, percebeu que havia dito algo bem estranho. Os funcionários ficaram ainda mais paralisados. Ninguém havia movido nenhum músculo da face. O dono da empresa também ficara com a cara de que não entendera nada. Minutos de silêncio que mais pareceram uma eternidade envolveram a todos. Mas foi nesse exato momento que o dono da empresa lembrou da história de Cristovão Colombo que, por mais que avançasse no mar, não encontrava nenhuma terra. Mas encontrou.

-...No momento em que estamos mais desesperançados - começou a dizer o dono da empresa, retomando o que dissera -, em extrema dificuldade, amigos, é porque estamos nos aproximando de algo realmente fantástico - conseguiu completar e tentar explicar a frase.

No dia seguinte todos estavam trabalhando mais e procurando uma saída para empresa com essa frase na cabeça:

- Mas isso tudo é fantástico!...

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4- "Ainda bem que existe dexametasona"

 

Todo mundo estava passando mal, em meio à forte nevasca que nos atingira no alto da maldita montanha. Estávamos a pouco mais de cem metros de atingir o cume e tivemos que voltar. Havia uma possibilidade de alguém despencar lá de cima e levar alguns outros com ele, atrelados que estávamos às cordas fixas.

-Vamos parar e voltar! - ordenou o nosso guia, puxando sua máscara de oxigênio rapidamente para gritar essa ordem de comando.

Sentia-me tão exausto pela escalada até ali, e ainda com receio de que o meu cilindro de oxigênio acabasse que não questionei nada. “Bom senso e ponderação acima de tudo”, pensei. Foi quando Ângela, uma das alpinistas do grupo, desmaiou à minha frente. Uma situação que poderia ser fatal a ela, além de atrapalhar a retirada de todos. Luís, o único médico do grupo de alpinistas, desatrelou-se da corda e se aproximou de Sandra. Rapidamente retirou de sua mochila uma seringa já preparada e devidamente enrolada em um estojo térmico e injetou, através do macacão mesmo, em um dos braços.

- O que é isso!? - consegui perguntar.

- É Dex! Para levantá-la logo desse desmaio. Dexametasona - explicou o médico. - Sempre trago para evitar, se for o caso, os efeitos da altitude.

Não demorou muito para Sandra levantar-se meio que grogue ainda.

- Vamos descer logo, gente! - gritou então o guia, observando a situação toda e puxando a retirada.

O médico e eu amparávamos Ângela, enquanto o gelo nos fustigava os sentidos. Existe sempre algo de terrível em uma montanha gelada passando por um vendaval de neve. A montanha parece que quer te matar. Mostra a sua força cruel além de qualquer controle físico. Você se torna um bonequinho nas mãos de uma montanha furiosa. Ela quer destruir teu sonho e mostrar a sua força. "Ainda bem que existem os cilindros de oxigênio e a dexametasona", pensei, antes de delirar, achando que poderia voar. Foi quando tentaram lhe puxar por uma das pernas e ele sentiu-se inevitavelmente caindo no vazio. `

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5- "A Terra girava como sempre"

 

Caminhamos pela sala. Um estofado azul, gasto pelo uso; uma mesa de centro, com dois copos; uma garrafa de uísque Jonny Walker, vazia; uma televisão; uma estante, com alguns livros. O apartamento era pequeno e abafado. Pela janela aberta não circulava nenhum ar. Talvez devido à proximidade com o bloco de apartamentos vizinho. Havia uma passagem à esquerda dessa sala que levava a uma pequena cozinha. Uma geladeira, um fogão, um móvel para guardar alimentos e louças; e uma pequena mesa redonda com dois pratos com restos de comida. Uma garrafa de plástico com água pela metade completava o resto do quadro. Saindo dessa cozinha, havia um pequeno banheiro e um quarto. A porta do banheiro encontrava-se aberta. A do quarto, quando abrimos, nos mostrou logo de imediato um corpo de mulher despido e estendido na  cama com uma face empapada de sangue jogada ao lado.

- Mais um - comentei, me dirigindo para um delegado, o Parreiras, aparentemente impressionado.

- Droga - resmungou o delegado. Isso não para nunca? - completou.

- Crimes nunca param de acontecer - observei, enquanto vasculhava ainda mais o apartamento.

- Qual o motivo dessa gente matar tanto -, perguntou o delegado.

- Desejos - respondi. - Desejos é o que essa gente toda carrega no peito e que tem que realizá-los - completei frio e calculista. 

O tempo então passou um pouco mais com algumas pessoas do mundo cometendo mais e mais crimes. Alguns imediatamente noticiados; outros, totalmente silenciados. Fazer o quê? A Terra girava como sempre e nós tentávamos aplicar o que rezava a justiça.

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